RESUMO
O propósito deste
trabalho é apresentar algumas idéias que podem motivar o debate em torno das
possibilidades da educação da infância se constituir como um outro espaço/tempo
onde as crianças são assumidas como sujeitos dialógicos do processo ensino-aprendizagem.
Tendo presente as idéias do educador Paulo Freire, busca-se discutir
determinados pontos que se consideram importantes para este debate. Do universo
freireano destaca-se a possibilidade e os desafios da reinvenção de práticas
pedagógicas que colocam em xeque determinadas posturas e identidades educativas
antidialógicas que se consolidaram ao longo dos tempos. Este trabalho está
relacionado com as grandes necessidades e as significativas emergências de
repensar posturas pedagógicas presente nos trabalhos educativos na infância.
Assim, buscamos analisar em que medida a pedagogia da conscientização de Paulo
Freire pode ser visualizada como constructo teórico capaz de contribuir com a
consolidação de uma pedagogia para a educação da infância que pretende se
afirmar como espaço/tempo privilegiado, articulados por diversos contextos
subjetivos, sociais e culturais, onde as crianças poderão ser assumidas como
sujeitos críticos e criativos.
Palavras-chave: Paulo Freire; Educação; Educação da Infância;
pedagogia da conscientização; pedagogia da infância.
1.
Pontos de partida
Ao se consolidar,
cada vez mais, como importante campo de investigação nas diferentes ciências
sociais, a infância tem sido alvo de consideráveis produções no domínio destas
mesmas ciências. Mas também parece possível assinalar a sua tímida presença –
ou mesmo a sua assumida ausência – em determinados terrenos que se apresentam
cruciais na constituição do campo das ciências da infância. Partindo da
pedagogia, por exemplo, é admissível dizer que "a educação de infância
constitui seguramente o domínio do campo educativo mais invisível no que diz
respeito à expressão pública da reflexão sociopedagógica e política"
(Correia, 2002:4).
No entanto, esta
invisibilidade parece ser diminuída, uma vez que a intensificação do processo
de escolarização das crianças pequenas e a busca de uma pedagogia capaz de
respeitar os direitos infantis, são sinais que podem ser assumidos como
exigências de uma maior atenção que a educação de infância reclama sobre si. A
busca de pressupostos teóricos que pudessem subsidiar um novo olhar
sobre as concepções de infância, de educação e de sociedade, tendo sempre como
ponto de partida a criança na sua concretude histórica, acabou por aproximar
profissionais e diferentes autores, com o objectivo de afinamento com uma
fundamentação teórica que se apresentasse sólida, na constituição de uma
proposta de educação de infância. A necessidade de afirmação de uma pedagogia
da educação de infância – distanciando-se, cada vez mais, daquele debate que
parecia reduzir as questões da educação e da infância às preocupações meramente
didácticas – possibilitou o surgimento de um campo de conhecimento que se
construía a partir de regularidades e peculiaridades muito próprios e que já não
se via satisfatoriamente contemplado no amplo campo pedagógico. As
especificidades da educação a ter lugar com crianças pequenas, acolhidas em
programas de creche e pré-escolar, despontavam como mote para o que se
pretendia afirmar como pedagogia da educação de infância, como
parte de um campo mais amplo que pode ser denominado de pedagogia da
infância.
Debruçar-se sobre as
possibilidades e os limites do trabalho a ser desenvolvido neste campo da
educação funcionaram, então, como um fio de Ariana, permitindo a
muitos profissionais e teóricos uma incursão pelos labirintos epistemológicos
existentes, afluindo naquilo que se foi denominando de pedagogia da educação de
infância "ou até mais amplamente falando, de uma pedagogia da infância,
que terá pois, como objeto de preocupação a própria criança: seus processos de
constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, sua cultura,
suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e
emocionais" (Rocha, 2000).
É nesta perspectiva
de ir ao encontro de fios teóricos capazes de tecer uma pedagogia da educação
de infância que se constitua como processo de construção histórica e política,
colectiva e individual, que trazemos Paulo Freire a este debate. Da sua praxis
pedagógica podemos ressaltar variados conceitos (sobre educação, sociedade,
história, cultura, alfabetização, diálogo, leitura e consciência) que se
apresentam como importantes contributos para a formulação de um conceito de
infância despedagogizado e desnaturalizado, mas pedagógico e cultural, de onde
se é possível conceber as crianças como sujeitos culturais, históricos e
dialógicos.
Ao pretendermos Paulo
Freire como convidado a entrar nesta discussão vemos aguçando, ainda mais, a
curiosidade de procurar entender em que medida o mundo da educação de infância
poderia ser lido e discutido, também, a partir da sua teoria. E em que medida
ele pode contribuir com a efectivação de uma pedagogia da educação de infância
que se constitua como espaço/tempo onde as crianças/sujeitos educandos são
assumidos "como seres capazes de saber, de saber que sabem, de saber que
não sabem. De saber melhor o que já sabem, de saber o que ainda não sabem"
(Freire, 2000a: 40).
2.
Paulo Freire e Educação de Infância: encontros possíveis?
Facilmente somos
confrontados com uma possível distância entre a Pedagogia Freireana e as
temáticas ligadas à infância e às crianças. A questão desta suposta ausência
despertou-nos uma curiosidade: identificar dentro de algumas das obras de Paulo
Freire a quantidade de vezes em que aparece referida a criança, a infância ou a
educação infantil. Assim, sem uma pretensão de metodologia de análise de
conteúdo, nos debruçamos sobre algumas de suas obras na expectativa de ver
diminuída uma ausência e, consequentemente, uma distância entre o universo
freiriano e o da educação da infância.
A leitura sobre o
pensamento de Paulo Freire, com um olhar mais sensível a estas questões, acabou
por nos proporcionar um encontro com determinados aspectos da sua pedagogia
que, directa ou indirectamente, parecem fazer referência à educação de
crianças. Assim, conseguimos identificar dois momentos que ele mesmo
caracterizou como significativos para a consolidação do movimento que seria
conhecido como Educação Popular, e que traduzidos pelo próprio Freire como
encontros com as realidades que lhe permitiram dar partida às grandes questões
colocadas em torno do projecto de educação que procurou defender ao longo dos
tempos. Estes momentos são, na verdade, encontros com o universo infantil,
onde, contactando com a realidade das crianças, Freire vai preparando-se para
ser o educador que foi.
O primeiro deles,
trazido das memórias da sua adolescência, refere aos encontros quer lhe
permitiram conhecer a realidade de outros meninos, e é assim caracterizado pelo
próprio Freire: "foram importantes as experiências de que participei na
adolescência, com meninos camponeses, com meninos urbanos, filhos de operários,
com meninos que moravam em córregos, morros, numa época em que vivíamos um pouco
longe do Recife" (Freire e Betto, 2001:7).
O segundo encontro,
conforme entendemos, onde Freire vai desvelar realidades que o ajudaram a
radicalizar a sua prática crescente e consciente, é assim apresentado:
"Eu
dirigia o Setor de Educação, que tinha a ver com escolas primárias para as
crianças das famílias operárias. Aquele momento (...) foi a matriz (…) dos meus
primeiros espantos (...) diante da dramaticidade da vida (…) Eu era diretor do
Setor de Educação do SESI de Pernambuco e coordenava o trabalho de professores
com as crianças. Fazia um trabalho com elas também no campo da aproximação
entre a escola e a família. Aquilo que a gente chamava na época e chama até
hoje de «Círculo de pais e professores». E foi exatamente vivendo a experiência
dos círculos, a experiência da relação entre a escola e as famílias, que fui,
inclusive, também aprendendo certos métodos de trabalhar" (Freire & Betto, 2001:8).
As suas experiências
nos círculos de pais e professores neste trabalho do SESI constituíram
importante referencial para que ele pudesse sistematizar e defender o trabalho
com os temas geradores. A sistematização deste trabalho foi descrita no
livro Educação como Prática da Liberdade (Freire, 1983), com a
primeira edição em 1967, onde Freire apresenta algumas das ideias que seriam,
mais tarde, desenvolvidas na obra Pedagogia do Oprimido(1974),
escrita já no exilo. Poderíamos afirmar, portanto, que este exercício, de
dialogar com a classe trabalhadora, tendo como ponto de partida a educação de
crianças e problemas ligados à infância representou para Freire um aprendizado,
do qual ele nunca se afastaria, que o faria um educador: "o que me fez
chegar a isso foi a prática mesmo, foi o seu dia-a-dia, foi vendo como é que as
crianças funcionavam na escola e como os pais funcionavam com as crianças,
através de pesquisas, (…) além de leituras teóricas" (Freire & Betto,
2001:12).
Para Paulo Freire a
atenção dada à realidade humana decorre da grande capacidade que tinha de
conexão com o mundo. Ele falou de si próprio como um menino
conectivo (Freire, 2000b:281) e esta sua característica se apresenta
não apenas como uma marca pessoal, mas, sobretudo, epistemológica que lhe
desafia à uma visão da realidade entrelaçada pelas diversidade histórica,
política, étnica, de género, de classe, etc. Assim, parece-nos possível falar
que a conectividade iniciada no menino Paulo
Freire fê-lo perceber, desde então, o seu posicionamento diante do mundo e das
pessoas como educador e educando.
A possibilidade do
encontro como sujeito ensinante/aprendente com outros sujeitos, igualmente
aprendentes/ensinantes, parece marcar a pedagogia freireana não como uma
pedagogia para o/a outro/a, mascom o outro e a
outra. Uma pedagogia, portanto, do sujeito solidário, contra
o sujeito solitário1. Daí ser possível afirmar que ele
"propõe uma pedagogia com o oprimido (subalterno) e
não para o oprimido, o que significa sobreele"
(Scocuglia, 2006: 27).
Sob esta perspectiva,
vamos encontrar na Pedagogia da Esperança Freire a descrever
um dos momentos em que teve a educação de infância contextualizada nas suas
teorias pedagógicas. Trata-se do relato do seu encontro com um grupo de
trabalhadores espanhóis, imigrantes na Suíça, que queriam discutir com ele, a
partir daPedagogia do Oprimido, a constituição duma escola de educação
de infância onde as crianças pudessemproblematizar a sua própria vida e
onde, "através da experiência de um pensar crítico em torno do mundo (…)
[pudessem] estudar com seriedade, aprender, criar uma disciplina de
estudo" (Freire, 2001: 139-140). Uma escola que seria na verdade problematizadora, como
ele mesmo a denomina em seus relatos, e que – naquele momento de eclosão dos
estudos althusserianos em torno da escola (Althusser, 1974) como reprodutora
dos aparelhos ideológicos dominante –, precisava entender criticamente o seu
próprio papel, bem como o papel que nela poderiam ter os seus educadores.
Freire analisa a
possibilidade de uma escola que (ela mesma) seria objecto de reflexão das
crianças e objecto de reflexão dos pais, cujo "interesse primordial seria
diminuir o risco de alienação que seus filhos corriam, longe de sua cultura,
risco reforçado intensamente pela escola suíça, indiscutivelmente competente,
do ponto de vista dos interesses dominantes (…) [ao mesmo tempo em que
procurava] estimular nas crianças uma forma crítica de pensar" (Freire,
2001: 140). Uma escola que pretendia, a partir da realidade dos seus educandos,
problematizar a sua prática e analisar o seu currículo, não só o explícito, mas
também o oculto. Que pudesse ter "uma educação aberta, democrática, que
estimulasse nas crianças o gosto da pergunta, a paixão do saber, da
curiosidade, a alegria de criar e o prazer do risco, sem o qual não há
criação" (Freire, 2001: 141).
Nesta experiência de
educação de infância problematizadora, Freire via as possibilidades
de concretização de suas ideias descritas na Pedagogia do Oprimido. E ele mesmo
aponta a coincidência que havia entre elas, ao afirmar que:
"A leitura da
Pedagogia confirmava algumas das intuições que os haviam movido até a
concretização de sua experiência. Toda a análise das relações dialéticas
opressores-oprimidos, do processo de introjeção do dominador pelos dominados;
as reflexões em torno da educação bancária, de seu autoritarismo, da educação
problematizadora, do diálogo das démarches democráticas; a necessidade, numa
prática educativa progressista, de serem os educandos desafiados em sua
curiosidade; a presença crítica de educadoras e educadores e de educandos,
enquanto ensinando umas e aprendendo outros, todos aprendem e ensinam, sem que
isso signifique serem iguais ou que, quem ensina não aprende e quem aprende não
ensina" (Freire, 2001: 141).
3.
A Pedagogia da Educação de Infância e contributos freireanos
No campo da educação
de infância, o termo pedagógico tem suscitado uma importante discussão,
principalmente no tocante aos diferentes significados que esta mesma expressão
pode proporcionar. A referência e o entendimento que procuramos desenvolver
sobre uma pedagogia da educação de infância, busca ter em sua base uma
significação cultural, extrapolando um entendimento simplista que pode reduzir
este processo a um conjunto de actividades que se configura como escolar, feito
apenas para/na sala de aula.
A constituição de uma
pedagogia da educação de infância, subsidiada por importantes elementos
fornecidos pela sociologia e pela antropologia (da infância) – principalmente
no que se refere "a força da estrutura social na determinação das
oportunidades cotidianas das crianças [e a forma como] culturas diferentes
elaboram suas concepções e práticas educativas, [abriu caminhos para uma] maior
flexibilização e inovação dos modelos de educação infantil" (Oliveira,
2002:80). Tornou-se, portanto, possível falar em pedagogia da educação de
infância que, numa perspectiva interdisciplinar, prende-se a uma articulação
entre elementos do conhecimento científico, da ética, da estética, do desejo,
enfim de diferentes elementos de produção cultural, erudita e popular. Uma
pedagogia que busca
"Valorizar, nas
crianças, a construção de identidade pessoal e de sociabilidade, o que envolve
um aprendizado de direitos e deveres (bem como) ampliar certos requisitos
necessários para adequada inserção da criança no mundo atual: sensibilidade
(estética e interpessoal), solidariedade (intelectual e comportamental) e senso
crítico (autonomia, pensamento divergente)" (Oliveira, 2002: 49-50).
Partindo desta
hipótese de que a educação de infância pode se constituir como o espaço/tempo
de trabalho com crianças, tendo delas uma visão de sujeitos do direito, do
desejo e do conhecimento, parece-nos possível falar de uma pedagogia da
educação de infância, onde a escola pode ser assumida como espaço/tempo de
trabalho entre educadores e educandos. Uma pedagogia que, questionando a escola
como mero espaço de transmissão de conhecimento de um indivíduo para o outro,
descontextualizado culturalmente, possa vislumbrar a sua constituição como
espaço/tempo em que diferentes sujeitos desenvolvem relações de reciprocidade
(cooperativa e conflitual) entre si, articulados por diversos contextos
subjectivos, sociais e culturais. Ou seja, uma pedagogia da educação de
infância, cuja prática esteja fundada nos princípios de uma educação na
cidadania, em vistas do processo de emancipação dos educandos, que se apresenta
como processo que pode contribuir com a "construção da humanidade do ser
humano" (Souza, 2000:38).
No conjunto de ideias
proposto por Paulo Freire, a tomada de consciência da nossa inconclusão,
enquanto seres humanos, se constitui como principal ponto de partida para a
construção da "humanização, do ser mais do homem – objectivo básico de sua
busca permanente (...) [ou no] seu contrário: a desumanização, o ser
menos"2 (Freire, 1971:127). Ambos os casos
são possibilidades históricas, mas somente a busca de tornar-se um ser para
si pode ser considerada a sua verdadeira vocação. Sendo possibilidade histórica,
a construção da humanidade do ser humano – que tem na realidade existente o seu
ponto de partida, onde o sujeito da busca, ao se afirmar como sujeito-mundo,
consciente da sua possibilidade de ser mais, afirma-se como humano,
constitui-se como processo cultural que se estabelece nas relações construídas
entre os próprios seres humanos.
Para Freire, a
educação como quefazer humano que ocorre num espaço e
num tempo de interacção entre os sujeitos-mundo, se pode
afirmar como processo que, esforçando-se no sentido da desocultação da
realidade, contribui para que o ser humano existencialize a sua real vocação:
transformar-se a si próprio, transformando a realidade. É portanto nesta
"[...]
Inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo
permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se
reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens
educáveis, mas a consciência da sua inconclusão é que gerou a sua
educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que
nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a
esperança" (Freire, 2002: 64).
Ao assumir a educação
como espaço/tempo de conscientização do ser que se sabe inconcluso, todo o
trabalho por ela empreendido pode contribuir com a construção da humanidade do
ser humano. Assim, as ideias apresentadas por Freire, parecem abrir
possibilidades para uma afirmação de que a educação de infância, como espaço
permanente de busca do ser mais, também pode ser assumida como um momento de
experiência dialéctica da humanização dos seres humanos, no processo de relação
dialógica entre educadores e educando. A constituição deste espaço/tempo como
um espaço/tempo infantil não afasta a possibilidade do
desenvolvimento de um trabalho que pretende cultivar os valores da
solidariedade, do amor e da amizade, do respeito às diferenças, do senso
crítico, do aprendizado dos direito e dos deveres, pois "não importa com
que faixa etária trabalhe o educador ou a educadora", a educação é sempre
um processo a ser "realizado com gente, miúda, jovem ou adulta, mas gente
em permanente processo de busca". Gente que, "formando-se, mudando,
crescendo, reorientando-se, melhorando, mas, porque gente, capaz de negar os
valores, de distorcer-se, de recuar, de transgredir" (Freire, 2002:
162-3)", pode ser sujeito da sua própria humanização.
Estes horizontes
pedagógicos e estas possibilidades, que aqui assumimos também como um
posicionamento político-ideológico e epistemológico, é que nos impulsionam a
analisar as possibilidades de contribuição do pensamento de Paulo Freire e da
acção freireana à consolidação de uma proposta pedagógica da educação de
infância que redimensione as finalidades dos processos educativos a ter lugar
com crianças pequenas.
A possibilidade de
conferir à educação de infância uma dimensão problematizadora, nos moldes
freireanos, pode significar afastamento ou a minimização do mero
assistencialismo que, geralmente, serve à dominação, inibe a criatividade,
tolhe a intencionalidade da consciência e nega aos educandos a sua ‘vocação
ontológica e histórica de ser mais’. Contrariamente, uma educação libertadora
pode proporcionar um trabalho educativo com crianças pequenas, fundamentado na
criatividade que, estimulando a reflexão e a ação verdadeira dos educando e
educandas sobre sua próprias realidades, poderá ajudá-los a responder "à
sua vocação como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da
transformação criadora" (Freire, 1974: 83).
Esta possibilidade,
como também orienta Freire, acaba por exigir uma nova postura do educador, a
quem não será permitido negar a sua contribuição para que as crianças –
sujeitos-educandos – se constituam, cada vez mais, como protagonistas do
direito, do desejo e do conhecimento; sem deixar de considerar que o trabalho
com crianças exige atenção "à difícil passagem ou caminhada da heteronomia
para a autonomia" (…) [onde a sua presença] tanto pode ser auxiliadora
como perturbadora da busca inquieta dos educandos" (Freire, 2002: 78 –
sublinhado do autor). Porque, acrescenta ele, "não importa com que faixa
etária trabalhe o educador ou a educadora. (...) é um trabalho realizado com
gente, miúda, jovem ou adulta, mas gente em processo permanente de
busca. Gente formando-se, mudando, crescendo, reorientando-se, melhorando, mas
porque gente, capaz de negar valores, de distorcer-se, de recuar, de
transgredir" (Freire, 2002:162-3 – sublinhado nosso).
A experimentação e,
consequentemente, a vivência da educação de infância como realidade que pode
contribuir com a desocultação de verdades, tornam-se imperativas para o
exercício da intervenção crítica e criativa das crianças sobre o mundo,
transformando-o sempre que possível. Isto acaba por requer e ser resultante de
um novo ângulo de visão sobre o conceito de infância que permita emergir uma
imagem de criança tomada com base em suas condições concretas de existência,
social, cultural e historicamente determinada (Kramer, 1998). Ou seja, a
criança entendida enquanto sujeito historicamente construído, mas não
concluído. Por isto mesmo, um sujeito em processo permanente de busca do ser
mais que, estando consciente da sua inconclusão, pode vir a ser protagonista da
sua humanização, tornando-se cada vez mais gente mais gente.
4.
A Educação de Infância como espaço dialógico
Desde os estudos de
Philippe Ariès (1981), a atribuição de um significado social à infância tem
contribuído para o desvelamento e a re-significação de conceitos construídos e
sustentados em torno de uma ideia de infância que se caracteriza, apenas, como
mera etapa biológica do ser humano. De entre estes poderá referir-se a própria
ideia contida na palavra infância, que tem sido alvo de grande
discussão, uma vez que etmologicamente esta palavra deriva da expressão
latina in fans3 e quer significar "o que não
fala" ou "o não falante".
A discussão em torno
desta ideia da criança como sujeito que não fala, ou sujeito cujo poder do
exercício da fala não é reconhecido como verdadeira fala, vem se realizando de
forma muito intensa na educação de infância, suscitando, entre teóricos e
profissionais, um significativo debate sobre o próprio papel da educação que
tem lugar com crianças pequenas. Assim, a educação de infância pretendendo se
constituir como um espaço/tempo pedagógico, onde educadores e educandos se
afirmam como sujeitos historicamente construídos (cidadãos críticos, criativos
e responsáveis, capazes de entender e intervir sobre a realidade vivida), tem,
ao contrário, procurado afirmar-se como terreno fecundo para o exercício da
fala.
Neste sentido se tem
buscado no trabalho com crianças uma praxis viva, criativa e crítica, capaz de
intensificar um conceito de infância despedagogizado e desnaturalizado (Kramer,
1998), que faz emergir a criança como sujeito da linguagem. Sujeito que a
reproduz, mas que também a produz e que sendo feito de linguagem, se utiliza
dela para se afirmar como sujeito histórico, pronunciando o mundo na tentativa
de apreendê-lo e de transformá-lo, sempre que necessário. No âmbito desta
discussão, e conforme entendemos, as contribuições de Paulo Freire sobre a importância
e o papel do diálogo nos processos educativos, sobretudo o escolar, tornam-se
preponderantes uma vez que fornecem importantes subsídios capazes de justificar
a importância do diálogo construção da humanidade do ser humano.
Freire institui o
diálogo, crítico e libertador, como base fundadora do que chamou processo
de conscientização, em que o processo de formação, sustentado por uma
dialogicidade permanente, permite aos educandos pronunciarem o mundo,
mediatizados por este mesmo mundo, entendendo-o, descodificando-o e, quando
necessário, intervindo sobre ele para transformá-lo (Freire, 1974; 2001; 2002).
Por isso, defende que a pedagogia deve proporcionar uma educação
problematizadora (em oposição a uma educação domesticadora), cuja prática
educativa progressista desafia os educandos e as educandas em suas
curiosidades, e exige dos educadores e educadoras uma redefinição do seu papel
de ensinante, transformando-os em ensinantes-aprendentes, uma vez
que "ensinando uns e aprendendo outros, todos aprendem e ensinam, sem que
isso signifique serem iguais, ou que, quem ensina não aprende e quem aprende
não ensina" (Freire, 2001: 141).
Defende, portanto, a
possibilidade de existência dum espaço educativo dialógico competente, sério e
alegre, que jamais deve "castrar a altivez do educando, sua capacidade de
opor-se e impor-lhe um quietismo negador do seu ser" (Freire 2002: 33). E
compreende que esta possibilidade pedagógica pode estar presente em todas as
etapas da educação escolar.
4.1.
Falando sobre a Roda de Conversa
"Toda vez que eu
leio ou estudo alguma coisas de Paulo Freire ou sobre Paulo Freire eu penso:
gente, Paulo Freire está presente nos quatros cantos da educação infantil. Quer
dizer, ele pode estar presente em todos os cantinhos… em toda parte. A
pedagogia dele é um desafio para quem trabalha com as crianças. Nas rodas de
conversa, por exemplo, quando as crianças procuram entender o mundo a partir
delas próprias, quando elas interpretam as realidades e apontam criticamente
formas de mudar o mundo, o seu mundo? Isto não são as idéias de Freire
presentes naquele canto da educação infantil, que é o canto do diálogo. Mas na
educação infantil este não é o único canto onde ele deve estar presente".
O texto anteriormente
apresentado é excerto de entrevista gravada com educadoras de infância. Ele
constitui parte do material de pesquisa recolhido em um Centro de Educação
Infantil, onde procuramos, através da investigação-ação e da recolha
etnográfica, tomar como material empírico o trabalho pedagógico ali desenvolvido.
Estas educadoras procuraram estabelecer uma forte ligação do que
denominam Roda de Conversa, com as idéias que têm da pedagogia
de Paulo Freire, justificando que esta prática reflete, na verdade, um
posicionamento pedagógico que se funda na dialogicidade freireana.
A Roda de Conversa4 pretende ser, na educação de
infância, um espaço de partilha e confronto de ideias, onde a liberdade da fala
e da expressão proporcionam ao grupo como um todo, e a cada indivíduo em
particular, o crescimento "na compreensão dos seus próprios
conflitos" (Freire, M. 2002:21). Cada criança é desafiada a participar do
processo, tendo o direito de usar a fala para expressar suas ideias, emitir
suas opiniões, pronunciar a sua forma de ver o mundo. Falando e escutando o
outro que fala, as crianças vão experimentando a construção colectiva de
encaminhamentos necessários à resolução de conflitos que surgem no interior do
grupo.
A Roda de Conversa é
caracterizada por algumas educadoras de infância como "um dispositivo
pedagógico muito importante, mas extremamente desafiante"5. A sua importância se justifica pelas
possibilidades que proporciona em termos do exercício da responsabilidade
individual e colectiva, do estabelecimento de metas e normas, a administração
de problemas e conflitos, a tomada de decisões colectivamente e a prática da
democracia (DeVries & Zan, 1998).
Por sua proposta de
constituição como espaço do exercício democrático, onde a fala e a sua escuta
são os principais instrumentos de participação, a Roda de Conversa torna-se uma
actividade "desafiante" para o adulto que proporciona a sua
dinamização. Desafiante porque exige que ele "tendo um papel de
participante igual ao das crianças, tenha também o papel de coordenador da
conversa, sem, no entanto, impor suas ideias ao grupo, castrar a altivez das
crianças (como dizia Paulo Freire), tolher sua forma de organizar e apresentar
ideias". A própria disposição física dos participantes da actividade
(incluindo aí o adulto) – geralmente sentados em forma circular – representa de
forma tangível o sinal de pertença democrática ao grupo.
A Roda de Conversa
pode se dar em diferentes momentos ou situações. Nos momentos "instituídos",
ela aparece como parte do planeamento realizado pelo educador e tem por grande
objectivo a construção de ideias em torno de um tema gerador e das actividades
necessárias para o desenvolvimento do processo. Nestes momentos as crianças são
desafiadas a problematizar as questões que surgem e motivadas a uma apropriação
do trabalho proposto, de tal forma que "se vejam nas actividades e as
percebam como algo delas próprias". Nestas situações, os temas discutidos
na Roda de Conversa são, geralmente, apresentados pelo educador. Mas há que
ressaltar a preocupação com a não manipulação das ideias construídas, uma vez
que "quem dá o mote, pode determinar o conteúdo ou direccionar as
decisões".
Mas a Roda de
Conversa pode se configurar nos momentos em que determinadas situações surgem e
precisam ser resolvidas, conflitos precisam ser gerido, decisões precisam ser
tomadas, ideias mais complexas precisam ser discutidas. Nos momentos exigidos,
o educador como alguém que identifica as tensões que vão surgindo no
interior do grupo, propõe a realização de uma conversa,
onde a situação é confrontada por todos e em torno da qual se
vai dando as variações que é a contribuição de cada um. Nesta
ocasião, a roda funciona como um dispositivo democrático, um meio onde
as crianças e os adultos podem ir compreendendo as questões que geram no grupo
situações de mal-estar, de desconforto, de conflito… e emitindo suas ideias,
seus sentimentos e seus desejos vão discutindo formas de resolver estas
questões.
Tanto em uma como em
outra situação a Roda de Conversa é caracterizada pelos educadores de infância
como um recurso pedagógico que vai proporcionando o uso da palavra, que
não é apenas som… mas que é, também, pensamento, concepção de mundo, acção,
posicionamento diante da realidade.
4.2.
Cruzando falas que se completam
Para Paulo Freire
"uma das tarefas da escola, como centro de produção sistemática de
conhecimento, é trabalhar criticamente a inteligibilidade das coisas e dos
fatos e a sua comunicabilidade" (Freire, 2002: 140). Através do seu
pensamento (e ao longo da sua experiência político-pedagógica, como ele gostava
de destacar) fomos confirmando a sua opção e a sua defesa por uma educação que,
enquanto processo de relação dialógica entre as pessoas e entre estas e o
mundo, pode contribuir com a construção e a intensificação da humanidade do
humano.
Nas falas recolhidas
entre as educadoras de infância, sobre a significação da Roda de Conversa,
percebemos determinada confluência com algumas destas ideias que configuram o
pensamento Freireano. Neste sentido, podemos destacar o respeito ao
saber do educando e a problematização da realidade,
como pontos de partida de um processo educativo que permite ao educando
"participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber
de pura experiência feito, que leve em conta as suas necessidades e o torne
instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito da sua
própria história" (Freire, 1991: 16). A significação da
aprendizagem e o sentido que em torno dela é construído, se
afirmam na mesma medida que buscam responder às exigências do grupo onde ela se
dá.
É em torno das
realidades humanas dos seus sujeitos (e principalmente em torno das tensões que
colocam os sujeitos humanos frente a estas realidades) que a educação vai
procurando tecer e confirmar o seu sentido, possibilitando aos seus sujeitos
o exercício democrático da expressão ideias,
sentimentos e desejos. Neste sentido, a Roda de Conversa pode ser entendida
como uma resposta às necessidades de organização de ideias e gerência de conflitos,
mas como uma resposta que vai sendo exigida pelo próprio grupo e que pretende
cultivar os valores da solidariedade, do amor e da amizade, do respeito às
diferenças, do senso crítico, do aprendizado dos direitos e dos deveres.
Na prática educativa,
a liberdade e a oportunidade de dizer a palavra pronunciando o mundo são pontos
de partida do processo de afirmação dos sujeitos que a integram. Podendo dizer,
o educando se vai afirmando como sujeito que pode conhecer, que pode superar
seus limites, entender seus conflitos, construir e encaminhar formas de
intervenção sobre a realidade vivida.
A educação escolar ao
proporcionar o exercício do diálogo horizontal entre os seus diferentes
sujeitos, onde se é permitido dizer sem medo ou castração o que se pensa e o
que se sente, preenche de sentido os seus reais objectivos. A constituição
e afirmação do sujeito, "onde se propõe a construção do
conhecimento coletivo, articulando o saber popular e o saber crítico,
científico, mediados pelas experiências do mundo" (Freire, 1991: 83), se
estabelece, portanto, nesta relação crítico-dialógica entre educandos e
educadores e entre estes e o mundo.
As considerações
sobre a Roda de Conversa, no confronto com as ideias de Paulo Freire, foram
aqui apresentadas como forma de estabelecer um diálogo acerca do papel e da
importância que o exercício da fala pode ter no trabalho desenvolvido com
miúdos. E neste sentido também, as ideias de Paulo Freire foram aqui trazidas
como forma de aprofundar o debate em torno desta temática, uma vez que a sua
produção incide, principalmente sobre o diálogo como possibilidade de encontro
com o mundo. Encontro que pode conduzir a um entendimento e a uma intervenção
sobre esta realidade-mundo.
5.
Considerações finais
Como ficaria, então, delineada
uma pedagogia da educação de infância a partir das contribuições de Paulo
Freire?
Sabemos que o recorte
de ideias aqui apresentado, ainda não é suficiente para dar conta das
possibilidades de contribuição de Paulo Freire para uma pedagogia da educação
de infância. O que pretendemos foi apresentar algumas discussões sobre as
possibilidades da educação de infância se constituir como espaço de humanização
de suas crianças. E de que forma elas podem passar de objectos de
desumanização à sujeitos de sua própriahumanização,
intermediadas por uma prática de conscientização dialógica, sem violentar os
seus direitos infantis. Acreditamos que ensaiar possibilidades ou concretizar
propostas para pedagogia da educação de infância que se pretende
afirmar como espaço/tempo contrários à domesticação, deverá significar a
re-invenção das próprias ideias deste autor, considerando as complexidades do
universo infantil e as urgências nesta modalidade da educação.
De Paulo Freire
podemos depreender que a educação não pode abrir mão da utopia. Ele acredita
que ela deve ressaltar da esperança a sua capacidade de ser necessidade
ontológica e requerer da utopia a possibilidade de tornar-se concretude histórica.
Por isso não acredita na educação que humaniza, distante da utopia. E,
radicalizando, chega mesmo a assegurar que somente na educação libertadora, há
espaço para a utopia: é denunciando uma realidade vivida que se é possível
projectar uma outra realidade desejável.
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