CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE PARA A EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO CURRICULO
O presente texto trata de uma
pesquisa sobre a contribuição da pedagogia freriana para a construção do
currículo na perspectiva de apontar elementos que orientem à elaboração de propostas
de práticas pedagógicas emancipatórias e eticamente comprometidas com a
humanização. Destaca‐se
Paulo Freire para contribuição no campo do currículo à crítica a educação
bancária e a formulação de uma educação libertadora fundamentada na prática dialógica
que favorece a construção democrática do conteúdo programático da educação. A
partir da pesquisa é possível perceber que apesar de Paulo Freire não ter
proposto uma teoria de currículo, o sua contribuição para a educação oferece
categorias fundamentais para uma teorização crítica para o campo curricular.
Além de Paulo Freire vários
pesquisadores ligados à epistemologia pedagógica têm contribuído através de
suas diferentes concepções teóricas para uma melhor compreensão da
multidimensionalidade do fenômeno educativo. Paulo Freire formulou uma
concepção de educação libertadora, fundamentada numa visão humanista crítica,
que vê o ser que aprende como um todo – sentimentos, pensamentos e ações – não
se restringindo à dimensão cognitiva. A aprendizagem não se limita a um aumento
de conhecimentos, ela influi nas escolhas e atitudes do indivíduo, a prática
pedagógica do processo educativo, que concebe a educação como dialógica e
conduz o estudante a um pensar crítico da sua realidade. Os fundamentos teóricos
da proposta educacional de Paulo Freire têm a intenção de assegurar
aprendizagens que propiciem aos estudantes a construção de novos conhecimentos,
permitindo instrumentalizarem‐se
na luta pela melhoria das condições de existência. Esse pensar tem colaborado
para a construção de uma teoria curricular emancipatória e eticamente
comprometida com a humanização. Esses pensamentos contribuem com uma visão
ampla de currículo, percebendo‐o
como um dos mecanismos de veiculação da ideologia de uma sociedade que materializa‐se nas ações dos envolvidos
no processo educativo. Dessa forma, a prática curricular é compreendida como
uma totalidade sociocultural complexa, que envolve todas as interações do
espaço educativo. Corroborando com esse pensamento, Santiago (1990, p. 25)
aponta que o currículo é “a corporificação dos interesses sociais e [como a]
luta cultural que se processa na sociedade”. Em outras palavras, a autora
considera que os valores e interesses da sociedade se constituem na dinâmica do
cotidiano escolar, afirmando que “interesses e luta que invadem e transitam na
escola, concretizando‐se
nas práticas pedagógicas” (idem). Concordando com Silva (2007), Paulo Freire
não fez uma teorização específica sobre o currículo, contudo como destacam
Apple (2006), Giroux (1997), Santiago (1998, 2006, 2007) e Saul (2006) o seu
trabalho é referência quando se trata das teorias críticas do currículo. É
nessa direção que o presente texto trata de um estudo teórico sobre alguns
conceitos e princípios que fundamentam a pedagogia freireana e aponta sua
contribuição para as questões curriculares na perspectiva de indicar elementos
que orientem à elaboração de propostas curriculares e práticas pedagógicas que
visem à formação para a emancipação humana. A discussão no campo do currículo
tem sido ampliada e aprofundada, abandonando‐se
a concepção restrita e fragmentada que o currículo se refere apenas a
programação de conteúdos, passando a ser visto como um instrumento de ação
política que retrata o conjunto de valores e interesses da sociedade, como
também o tipo de educação e a concepção de sujeito que se tem. Essa perspectiva
curricular tem sido fruto de várias colaborações teóricas progressistas, dentre
as quais destacamos os pensamentos e práticas pedagógicas de Paulo Freire. Na
verdade, a compreensão do currículo apoia a vida da escola, o que nela se faz
ou não se faz, as relações entre todos e todas as que fazem a escola. Apoia a
força da ideologia e sua representação não só com ideias, mas como prática concreta.
A contribuição de Freire para o campo do currículo está presente na crítica a
educação bancária e na formulação de uma educação libertadora. A educação
bancária que tem por referência as teorias tradicionais do currículo compreende
os estudantes como depósitos vazios a serem preenchidos por conteúdos do
domínio exclusivo do professor. Nessa concepção o estudante é percebido como
alguém que nada sabe como ser passível de adaptação e ajuste a sociedade
vigente. O estudante é exposto a um processo de desumanização, sua curiosidade
e autonomia na busca do conhecimento vão se perdendo, pois o conhecimento é
narrado pelo professor como algo acabado, estático, e o estudante começa
aceitar que o mundo, a história é algo pronto e acabado e ele é apenas um
objeto nessa história e, portanto, nada pode fazer para transformá‐La. “Esta concepção bancária
(...) sugere uma dicotomia inexistente homens‐
mundo. Homens simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens
espectadores e não recriadores do mundo” (FREIRE, 2001, p. 62). No caso, ele
apenas vive no mundo semelhante a qualquer animal irracional, mas não existe,
porque para a formação e o desenvolvimento de uma consciência capaz de
apreender criticamente a realidade é o que possibilita o seu ação livre,
criadora e determinadora de suas condições de existência. Freire critica esse
tipo de educação pelo caráter verbalista, dissertativo, narrativo, típico do
currículo tradicional centrado em disciplinas que estão afastadas da realidade
existencial das pessoas envolvidas no processo educacional. Para Freire: O
currículo padrão de transferência é uma forma mecânica e autoritária de pensar
sobre como organizar um programa, que implica, acima de tudo, numa tremenda
falta de confiança na criatividade dos educando e na capacidade dos educadores!
O centro, acima de tudo, está comandando e manipulando, à distância, as
atividades dos educadores e dos educando. (FREIRE, 2008, p. 97). Superando a
concepção bancária da educação, Freire formulou as bases para uma educação
libertadora, uma educação como prática da liberdade, fundamentada em uma teoria
da ação dialógica, que substituiu o autoritarismo presente na escola
tradicional pelo diálogo democrático na sala de aula. Essa concepção de
educação exige que os educando e educadores estejam engajados na luta para
alcançar a libertação, e compreenderem a sua vocação ontológica e histórica de “ser
mais”.
Desde o começo da luta pela
humanização, pela superação da contradição opressor‐oprimidos, é preciso que eles se convençam de
que esta luta exige deles, a partir do momento em que a aceitam a sua
responsabilidade total. É que esta luta não se justifica apenas em que passem a
ter liberdade para comer, mas “liberdade para criar e construir, para admirar e
aventurar‐se”. Tal
liberdade requer que o indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo nem
uma peça bem alimentada da máquina (FREIRE, 2001, p. 55). Na educação como
prática da liberdade, estudante e professor são os protagonistas do processo,
que juntos dialogam, problematizam e constroem o conhecimento; problematizar é
exercer uma análise crítica sobre a realidade das relações entre o ser humano e
o mundo. Para que isso ocorra, os sujeitos precisam voltar‐se, dialogicamente, para a
realidade mediatizadora, a fim de transformá‐La
e isso só são possível através do diálogo que é “desvelador da realidade”. Na
perspectiva freireana, essa atitude dialógica permite uma reflexão crítica dos
homens em suas relações com o mundo para sua autêntica libertação, pois nega o
homem abstrato, desligado do mundo, assim como também nega o mundo como uma
realidade ausente dos homens e considera que somente na comunicação tem sentido
a vida humana. Dessa forma, tanto o professor como o estudante tornam‐se investigadores críticos,
rigorosamente curiosos, humildes e persistentes. É preciso que a educação
esteja ‐ em seu
conteúdo, em seus programas e em seus métodos ‐
adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito,
construir‐se como
pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de
reciprocidade, fazer a cultura e a história (FREIRE, 1980, p. 39). Nessa
direção, os educando compreendem suas relações com o mundo, não mais como
realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo e,
dessa forma, são estimulados a um enfrentamento da realidade como seres da
práxis, que, sendo reflexão e ação é verdadeiramente transformadora da realidade.
Corroborando com as contribuições do pensar freireano para o currículo,
Santiago (2006), referindo‐se
às questões curriculares, ressalta que o pensamento de Paulo Freire traz alguns
conceitos que são fundamentais para uma teorização sobre o currículo como
prática político-pedagógico. A autora considera que o diálogo é uma das
categorias fundastes da pedagogia freireana e que poderá colaborar na
formulação da base teórico‐metodológica
do currículo e do desenvolvimento de práticas pedagógicas. De acordo com Freire
é a partir da prática dialógica que o sujeito desenvolve suas potencialidades
de comunicar, interagir, administrar e de construir o seu conhecimento
desenvolvendo sua capacidade de decisão, humanizando‐se. É com esta prática que o homem exercita o
respeito às posições do outro, sendo esta o caminho para a formação da
personalidade democrática. “O diálogo, como o encontro dos homens para a
pronúncia do mundo, é uma condição fundamental para a sua real humanização” (FREIRE,
2001, p. 134).
A palavra não é mero pensamento
expresso, é práxis, a ação transformadora no mundo e do mundo. O diálogo é a
condição de existir humanamente, onde os homens que se solidarizam, refletem e
agem juntos como sujeitos no mundo que querem transformar, humanizar.
O diálogo é o encontro entre os homens, midiatizados pelo mundo, para designá‐lo. Se, ao dizer suas
palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe‐se como o caminho pelo qual
os homens encontram seu significado enquanto homens, o diálogo é, pois, uma
necessidade existencial (FREIRE, 1980, p. 82). Para Freire o fundamento do
diálogo é o amor “se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens,
não me é possível o diálogo” (2001, p. 80). Esse sentimento não é uma forma ingênua
ou romântica de afeição, mas se caracteriza por relações autenticas de
respeito, tolerância e empatia entre pessoas que compartilham ideais na busca
da humanização. O diálogo só é possível com humildade, pois quando existe o
sentimento onde cada um acredita ser superior ao outro, esses não podem tornar‐se companheiros de
“pronúncia do mundo”. “Não há também diálogo, se não há uma intensa fé nos
homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer, de criar e recriar” (2001, p.
81). A esperança move o diálogo, pois o homem inacabado e consciente do
inacabamento tem uma prática dialógica porque acredita na transformação da
realidade, ou seja, “a esperança é um condimento indispensável à experiência
histórica. Sem ela, não haveria história, mas puro determinismo” (2003, p. 72).
Para que a relação dialógica possa ser estabelecida também faz‐se necessário um clima de
abertura, de participação, pois ao contrário o que se pode constituir é o
antidiálogo. O diálogo, ao ser alicerçado no amor, na humildade, na fé no ser humano,
na esperança e na participação estabelece uma relação horizontal de simpatia e
uma vivência marcada pela confiança entre os sujeitos. Em contrapartida o
antidiálogo é caracterizado pela quebra dessa experiência e o estabelecimento
de uma relação de verticalidade entre os sujeitos onde não há comunicação e só
comunicados. O antidiálogo é caracterizado pela ausência dos fundamentos do
dialogo ele “é desamoroso. É acrítico e não gera criticidade, exatamente porque
desamoroso. Não é humilde. É desesperançoso. Arrogante. Auto‐ suficiente” (FREIRE, 2008,
p. 116). Nesse quadro de ideias, o diálogo como categoria fundante da pedagogia
freireana, pode orientar as questões que permeiam a construção do currículo.
Dentre essas orientações destacamos que o diálogo não precisa ser vivenciado
apenas quando o professor e o estudante se encontram em uma situação
pedagógica, mas pode inicia‐se
na busca do conteúdo programático da educação, ou seja, em torno do objeto do
conhecimento que o professor vai dialogar com os estudantes. “Quem dialoga,
dialoga com alguém sobre alguma coisa. Esta coisa deveria ser o novo conteúdo
programático da educação” (FREIRE, 2008, p. 116). A escolha do
conteúdo programático é uma preocupação central que permeia as discussões no
campo teórico do currículo e também nas políticas pública. Paulo Freire (2005)
destaca a impossibilidade de existir uma prática educativa sem conteúdo, ou
seja, sem objeto do conhecimento, e justifica afirmando que a prática educativa
é naturalmente gnosiológica e que o ensino dos conteúdos deve estar associado a
uma leitura crítica da realidade, permitindo o desvelamento da razão dos
inúmeros problemas sociais. No entanto, o autor coloca que a questão
fundamental quem envolve a escolha do conteúdo programático é de natureza
política, pois “tem que ver com: que conteúdos ensinar, a quem, a favor de quê,
de quem, contra quê, contra quem, como ensinar. Tem que ver com quem decide
sobre que conteúdos ensinarem” (p. 45). Freire, em Pedagogia do Oprimido,
problematiza os princípios norteadores para construção de um currículo que
atenda aos pressupostos de uma educação libertadora. Nessa construção, destaca
a relevância do conteúdo programático, mas difere das teorias tradicionais do
currículo na forma como esse conteúdo é construído. Com isto, fica claro o
lugar do conteúdo da educação no currículo crítico como outra contribuição do
pensamento freireano (SILVA, 2007). Para Freire os conteúdos não podem ser
pedaços de uma realidade desconectada da totalidade, faz‐se necessário propor aos estudantes dimensões
significativas de sua realidade, cuja análise crítica permita reconhecer a
interação de suas partes, para que, dessa forma, possam compreender a
totalidade e os conteúdos possam ganhar significado. O conteúdo programático da
educação não é um conjunto de informações que deve ser depositado nos educando,
contidos em programas organizados exclusivamente por gestores ou professores de
acordo com a concepção bancária de educação. “Numa visão libertadora, (...) o
seu conteúdo programático já não involucra finalidades a serem impostas ao
povo, mas, pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os
educadores, reflete seus anseios e esperanças” (FREIRE, 2001, p. 102‐103). O conteúdo deve ser
buscado dialogicamente com o estudante e construído a partir da visão de mundo
deste. O professor através de contradições básicas da situação precisa
problematizar a realidade concreta, desafiando o s estudantes para que busquem
respostas não só no nível intelectual, mas no nível da ação. É nessa realidade
mediatizadora, que o conteúdo programático da educação pode ser construído, ou
seja, “será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o
conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático
da educação ou da ação política” (idem, p. 86). A questão que se coloca na
recriação da educação, na etapa de transição revolucionária, não é só
apresentar aos educando os conteúdos programáticos de uma forma competente,
mas, competentemente também, refazer esses conteúdos com a participação das
classes populares, superando‐
se igualmente o autoritarismo no ato de “entregar” os conteúdos ao educando
(FREIRE, 2002, P. 93). Sendo assim, reconhecer a importância da prática
dialógica para a construção do conteúdo da ação educativa possibilita
diferentes maneiras de formular e organizar o currículo numa perspectiva
libertadora que tem por base a curiosidade, a autonomia, a criticidade, a
práxis e a emancipação. Destacamos como contribuição de Paulo Freire para o
campo do currículo a crítica a educação bancária e a formulação de uma educação
libertadora fundamentada na prática dialógica que favorece a construção
democrática do conteúdo programático da educação. Os elementos presentes nos
aportes teóricos do pensamento de Paulo Freire mostram a centralidade da teoria
crítica do currículo, devido ao fato dos seus pressupostos expressarem
claramente que nenhuma prática educativa é neutra e desinteressada, mas reflete
as questões de poder, bem como ter o diálogo como princípio teórico‐metodológico da ação
educativa. Sendo assim, a construção do conhecimento além de possibilitar ao
estudante maior poder social e de intervenção para transformar as situações
menos humanas em situações mais humanas, pode permitir aos sujeitos a busca
constante por ações e reações de solidariedade, respeito e responsabilidade
para consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Nessa direção, compreendemos
que o pensamento de Paulo Freire oferece alguns conceitos que são fundamentais
para uma teorização crítica do currículo, na perspectiva de uma formação
sociocultural e política do ser humano. Sendo assim, esse pensar pode
contribuir para sustentar propostas curriculares e práticas pedagógicas que
visem à formação para a emancipação humana.
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